sexta-feira, 13 de outubro de 2017

Autoestima


         Todos nós temos uma impressão sobre nossa pessoa. A maneira como nos vemos, ou seja, a auto-imagem que formamos, é um fator determinante nos relacionamentos e na forma de encararmos a vida. Ela pode ser fonte de alegria e criatividade ou pode gerar muito dos nossos problemas.
         Essa imagem pode fazer com que nos comportemos de maneira a situar as outras pessoas a nossa volta. Isso significa que aquele padrão de tratamento que damos a nós pode ser copiado por aqueles que estão próximos.
         Muitas vezes sentimos um desconforto interno, uma sensação de que não fazemos bem algo, que somos vítimas de críticas constantes ou simplesmente que nos ignoram. Esse desconforto pode ser causado pela ausência de autoestima.
         Provavelmente estamos nos culpando por algo, confiando menos em nossas qualidades e potencialidades, ou sendo menos compreensivos, quem sabe até nos cobrando perfeição.
         Esse é o momento ideal para refletirmos um pouco. A autodesvalorização mina a confiança e acabamos por retirar a criatividade e motivação para enfrentar novos desafios.
         Uma boa forma de começarmos a nos curar é reconhecer que estamos sendo pouco tolerantes, que podemos aceitar nossos defeitos e enxergar nossas qualidades.
         Comecemos bem devagar a valorizar pequenos atos. A consciência de que estamos fazendo o melhor que podemos dentro das circunstâncias da vida, no momento já é um avanço.
         Experimentemos também a cada dia nos observarmos com olhos amorosos, menos críticos, mais interessados.
         Experimentemos a cada dia ser uma fonte geradora de estímulo, criatividade e alegria.
         A autovalorização não implica em desvalorizar os outros, mas sim trazer à consciência nossos valores e reconhecer nos outros o que lhes cabe de melhor.

(Desconheço o autor)

domingo, 30 de abril de 2017

O DESENVOLVIMENTO DAS EMOÇÕES NA PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL DE VIGOTSKI

O DESENVOLVIMENTO DAS EMOÇÕES NA PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL DE VIGOTSKI
Eudes Alencar, UNI-RN
E-mail: eudespsicologo@gmail.com
Rosângela Francischini, UFRN
E-mail: rofrancischini@gmail.com

Palavras-chave: Psicologia Histórico-Cultural, desenvolvimento, emoções,  


A psicologia histórico-cultural representada, sobretudo, por Vigotski, trouxe contribuições significativas em diversos campos do conhecimento, dentre eles: o estudo do desenvolvimento humano, do pensamento e da linguagem, da educação e das emoções. Porém, destacamos que mais recentemente viu-se crescer o interesse de pesquisadores para com o estudo das emoções no interior dessa vertente teórico-metodológica. Para Machado, Facci e Barroco, (2011), mesmo sendo, esta temática, pouco explorada pelos pesquisadores, o estudo das emoções perpassa todos os trabalhos escritos pelo autor. Sublinhamos que a principal publicação de Vigotski a respeito dessa temática foi sua obra Teoria das Emoções: estudo histórico-psicológico, escrita entre 1931 a 1933 e deixada inacabada pelo autor, possivelmente, devido a sua condição debilitada de saúde. Mesmo diante de sua frágil saúde, essa obra deixou contribuições significativas no estudo das emoções, ocupando um lugar central na vasta literatura do autor. Portanto, a referida obra constitui-se como referência principal das reflexões aqui apresentadas. Observamos, no entanto, e o que segue reflete essa observação, que esse estudo é necessariamente suportado pela abordagem, em sua totalidade, principalmente no que se refere ao desenvolvimento histórico-cultural do sujeito. Assim, nossa leitura e sistematização dos escritos de Vigotski que resultaram nesta proposta, enfatiza o estudo das emoções sem desintegra-la do desenvolvimento, em sua totalidade. Isto posto, este trabalho possibilita discutirmos o estudo do desenvolvimento histórico das emoções tomando como referencial teórico a psicologia histórico-cultural de Vigotski. Os estudos de Vigotski sobre as emoções são fundamentados, em um primeiro momento, principalmente por suas críticas às correntes psicológicas naturalizantes e fisiológicas das emoções, em especial, as concepções teóricas de James-Lange (Vigotski, 1933/2004). Em suma, esta teoria afirma que as emoções não podem existir sem alterações orgânicas e ocorrem somente quando o indivíduo interpreta suas respostas fisiológicas ou sensações, decorrentes dos estímulos sensoriais (Ortiz, 2010). Esse modelo sintetiza-se nos seguintes exemplos: ficamos tristes porque choramos e ficamos com medo porque trememos, ou seja, considera as reações fisiológicas como a fonte das emoções (Vigotski, 1933/2004). Vigotski (1930/2013), assim descreve o desenvolvimento histórico das emoções:  por meio de um processo dialético, a constituição intersubjetiva do sujeito histórico configura as emoções, tirando-as de uma concepção naturalista que as compreende como processos fisiológicos da ordem das funções psicológicas inferiores, elevando-as para um plano superior da vida psicológica. Assim, as emoções são funções psicológicas superiores, culturalizadas, passíveis de desenvolvimento e transformações. (Machado et al., 2011).
Desse modo, de acordo com Vigotski (1930/2013), as emoções concebidas como processos psicológicos superiores surgem somente na condição histórica, sendo o resultado das relações intersubjetivas e, neste fato, reside o processo de desenvolvimento das emoções. Como visto, Vigotski liberta-se das concepções que reduzem as emoções a triviais funções fisiológicas, situando-as como um campo interdependente da vida psicológica dos sujeitos. O autor compreende as emoções como formadas a partir de condições histórico-culturais, desempenhando uma atividade mediadora, ao cumprir uma função de intermédio entre o sujeito e o seu contexto histórico-social (Machado, et al. (2011).A partir daqui, estabeleceremos algumas reflexões sobre a relação entre a emoção e os processos de desenvolvimento, ou seja, a emoção como um processo psicológico superior, que se aprende e se desenvolve a partir dos contextos onde o sujeito está inserido. Antes de introduzirmos essa discussão, caberia então, nos dedicarmos à definição do conceito de desenvolvimento. De acordo com Bozhovich (2009), o processo de desenvolvimento não é, de forma alguma, linear, segmentado, explicativo e causal, mas, sim, o resultado da internalização entre os fatores externos e internos, ou seja, se organizam a partir de processos da integralidade e singularidade do sujeito. Nessa direção, Campos e Francischini (2003) afirmam que “o processo de desenvolvimento consiste na internalização de regras, valores, modos de pensar e de agir ocorrentes nas interações sociais do cotidiano dos sujeitos, nas práticas sociais e discursivas que permeiam as instituições sociais (família, escola, igreja, trabalho...) e os meios de comunicação. Nessas interações, recorre-se aos instrumentos de mediação semiótica disponíveis na sociedade, entre os quais a linguagem ocupa posição privilegiada”. Nesse sentido, Brossard (2012) afirma que o desenvolvimento é a transformação integral que se produz no sujeito a partir de sua inserção no mundo da cultura e das relações sociais. Destarte, para este teórico, o desenvolvimento é por essência cultural, tendo como consequência a compreensão das possibilidades de autonomia do sujeito. 
Machado, et al. (2011) afirmam que em diversas culturas as emoções são expressas em signos, modificam-se e ganham continuidade na intersubjetividade, tendo a linguagem um papel central como organizadora das mesmas.  Em vista disso, os sentimentos são emoções que ganham significado por meio da linguagem, e, em diferentes contextos participam do processo de desenvolvimento sociocultural dos sujeitos (Costa & Pascual, 2012). Isto posto, para esses autores, no processo de desenvolvimento os sujeitos estabelecem intercâmbios sociais, comunicam-se e aprendem socialmente a significar suas emoções, constituindo sua condição, enquanto sujeitos, histórico-sócio-emocionais.  Assim, as palavras organizam e materializam as emoções, desvencilhando-as do mundo interno dos sujeitos e expressando-as em suas relações sociais. Destacamos as palavras de Machado, et al. (2011) quando afirmam que as concepções de linguagem e emoção estão imbricadas pelo colorido emocional que acompanha cada palavra. A linguagem torna-se essencial tendo um papel indispensável, tanto nas relações sociais como nas emoções historicamente aprendidas. 
Como mostra Brossard (2012), as emoções humanas têm um caráter eminentemente cultural e significante, quer dizer, vão sendo organizadas dinamicamente de acordo com o meio social no qual o sujeito está inserido. Nesse sentido, se constroem, se transformam, se significam, se ressignificam; são, assim, essenciais nos processos de desenvolvimento do sujeito. Cabe-nos destacar, desse modo, a necessidade de uma concepção de sujeito que leve em consideração o desenvolvimento social das emoções e sua importância na vida dos sujeitos. De acordo com Vigotski (2010), os determinantes do contexto exercem um papel importante no desenvolvimento psicológico e emocional da criança, ou seja, a maneira singular de como ela toma consciência, concebe e se relaciona com acontecimentos e situações específicas do meio. Portanto, buscar compreender as emoções no processo de desenvolvimento é, sobretudo, a busca em conceber a constituição histórica do sujeito mediada pelas relações estabelecidas em seu cotidiano. Dessa forma, o estudo das emoções ganha originalidade em Vigotski, como, também, no estudo do desenvolvimento humano, abrindo novos caminhos e possibilidades na busca da compreensão do ser humano.



Bozhovich, L. I. (2009). The Social Situation of Child Development. Journal of Russian and East European Psychology, 47 (4), 59-86.

Brossard, M. (2012). Le développement comme transformation par appropriation des
oeuvres de la culture. In: Y. Clot (org). Vygotski maintenant (pp. 95 - 116). Paris: La Dispute.

Campos, H. C. e Francischini, R. (2003). Trabalho infantil produtivo e desenvolvimento humano. Psicologia em Estudos, 8(1), 119-129. Maringá, Jan./Junho.

Costa, A. J. A, & Pascual, J. G. (2012). Análise sobre as emoções no livro Teoría de las Emociones (Vigotski). Psicologia & Sociedade, 24(3), 628-637.

Machado, L. V., Facci, M. G. D., e Barroco, S. M. S. (2011). Teoria das emoções em vigotski. Psicologia em Estudo, 16(4), 647-657.

Ortiz, A. D. (2010, abril). Teorias de las emociones. Innovación y experiencias educativas, 29, (4). Recuperado de http://www.csi-csif.es/andalucia/modules/mod_ense/revista/pdf/Numero_29/ALVARO_DIAZ_1.pdf.

Vygotski, L. S (2013). Sobre los sistema psicológicos. Obras Escogidas I: El significado histórico de la crisis de la psicologia (pp. 71 - 93) Madrid: Machado Grupo de Distribución. (Texto original publicado em 1930).

___________.  (2010). Quarta aula: a questão do meio na pedologia (M.P. Vinha, Trad.). Psicologia USP, 21(4), 681-701.

___________. (2004). Teoría de las emociones: estudio histórico-psicológico (J. Villaplana). Madrid: Ediciones AKAL. (Texto original publicado 1931 e 1933).




PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO: contribuições de Vygotsky e Wallon

PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO: contribuições de Vygotsky e Wallon
Eudes Alencar (UNI-RN)
Rosângela Francischini (UFRN)
Introdução
Este capítulo é um recorte de uma pesquisa desenvolvida como requisito para conclusão de curso de pós-graduação (mestrado), que teve por objetivo responder a seguinte questão: “Como se caracteriza o processo de constituição do sujeito na relação com a alteridade, à luz da perspectiva histórico-cultural de Vigotski e na psicologia psicogenética de Henri Wallon, considerando as convergências, divergências e (im) possibilidades de complementariedades conceituais entre essas duas abordagens teóricas”? (ALENCAR, 2016, p. 12). Assim caracterizado, alguns segmentos deste texto são semelhantes, mesmo idênticos, àqueles presentes na dissertação; outros segmentos, modificados e, outros ainda, acrescentados, considerando o objetivo aqui desenhado, de enfatizar os aspectos que contribuem para a compreensão da constituição do sujeito nos múltiplos contextos de seu desenvolvimento, o que se estende para os contextos educacionais.
A perspectiva histórico-cultural de Vigotski e a psicologia psicogenética de Henri Wallon são concepções de base marxista; adotam, portanto, o materialismo dialético como método. Vigotski e Wallon, a partir de suas perspectivas teóricas, contribuíram significativamente no estudo do desenvolvimento humano, com ênfase para o desenvolvimento do pensamento, da linguagem e das emoções, aspectos esses, relevantes na área da Psicologia e da Educação. Nos contextos educacionais, de modo geral, com a mediação dos signos (com destaque para o signo linguístico), busca-se, dentre outros objetivos, o desenvolvimento do pensamento, a formação da consciência. Nesse processo, o componente afetivo, das emoções, não pode ser negligenciado. Observa-se um destaque desse aspecto em Wallon. Em Vigotski, mais recentemente viu-se crescer também o interesse de pesquisadores para com o estudo das vivências e emoções, principalmente após o acesso, até então restrito, à denominada Quarta Aula, (VIGOTSKI, 2010).

Contextualizando os autores e suas abordagens
A psicologia Histórico-Cultural emergiu na efervescência da crise revolucionária russa e encontrou naquele contexto histórico-cultural, as condições para o surgimento de um novo paradigma psicológico, em oposição aos pensamentos científicos vigentes - deterministas, naturalizantes, idealistas e mecanicistas, sobre o conhecimento psicológico, apresentando uma nova concepção de sujeito.
Esta perspectiva teórica, representada, sobretudo, por Vigotski (1896-1934) - seu principal teórico -, Luria e Leontiev, se propôs, assim, conceber o ser humano, em sua “natureza”, como histórico, social e culturalmente inserido. Assim, a dimensão social, interpessoal e cultural ganha importância e fundamento na construção do sujeito psicológico; “Vigotski se opôs a qualquer reducionismo naturalista do ser humano” (Friedrich, 2012, p.62).
Para Teixeira (2005) “O que caracteriza a psicologia de Vigotski e seguidores, enfim, é o fato de estar fundamentada filosoficamente na concepção marxista de mundo e, por essa razão, abordar a gênese e o desenvolvimento do psiquismo desde um ponto de vista histórico e social” (p.24). Nessa perspectiva, citando Blonski, Vigotski afirma: “O comportamento só pode ser compreendido como a história do comportamento. Esta é a verdadeira concepção dialética em psicologia”. (Vigotski, 1931/ 2012a, p.68).
Henri Wallon (1879 – 1962) viveu em um contexto histórico de intensa instabilidade social e mudanças políticas, motivo pelo qual alguns autores brasileiros destacam que esse cenário de turbulência propiciou as condições fundamentais de influência sobre suas ideias acerca do lugar central que o meio ocupa em sua concepção teórica (Galvão, 2011).
Do mesmo modo que Vigotski, Wallon construiu seu sistema teórico no início do século XX, (muito embora, diferentemente de Vigotski, pôde desenvolve-lo até a década de 60), contexto em que as correntes psicológicas vigentes, como assinalado acima, apresentavam uma visão reducionista acerca do psiquismo humano, em que enfatizavam os processos lineares, biologizantes e mecanicista do desenvolvimento. Também Wallon opôs-se a essas correntes. A esse respeito, René Zazzo declara, em uma apresentação de Henri Wallon, num artigo incluído na primeira edição portuguesa (1978) da obra A Evolução Psicológica da Criança, (Wallon, 1941/2005): “Para apreciar a obra de Henri Wallon, o que ela tem de original, de inovador, seria necessário situá-la na história da Psicologia e compará-la com as obras dos seus contemporâneos, outros eminentes psicólogos da infância (p.9)”. O teórico francês, no prefácio do livro Para Conhecer Wallon - uma Psicologia Dialética, de Pedro da Silva Dantas, assim expressa: "Somos forçados a ultrapassar nossa razão clássica e a romper com nossa inteligência linear para compreender Wallon e, graças a ele, melhor compreender as crianças" (Dantas,1983, p.3).

Desenvolvimento: do pensamento, da linguagem, das emoções
            Pilares nas abordagens de Vigotski e Wallon, esses três domínios do desenvolvimento do sujeito – pensamento, linguagem e emoções – serão trazidos à reflexão, a seguir, ressaltando-se o específico de cada um desses domínios sem, contudo, negligenciar a inter-relação entre eles, bastante cara às duas abordagens aqui consideradas.  As relações com os contextos educacionais serão tecidas no percurso aqui proposto.
            Iniciamos com uma afirmação de Vigotski (1931/2012c), sobre o processo de desenvolvimento:
[...] a concepção tradicional sobre o desenvolvimento das funções mentais superiores é, sobre tudo, errônea e unilateral, porque é incapaz de considerar esses fatos como fatos do desenvolvimento histórico, porque os acusa unilateralmente como processos e formações naturais, confundindo o natural e o cultural , o natural e o histórico, o biológico e o social no desenvolvimento mental das crianças; brevemente mencionadas, tem uma compreensão radicalmente errônea da natureza dos fenômenos estudados. (p.12).

De acordo com Bozhovich (2009), o processo de desenvolvimento não é, de forma alguma, linear, segmentado, explicativo e causal, mas, sim, o resultado da internalização de fatores externos e sua transformação em aspectos internos, ou seja, implica em uma organização de processos de integralidade e singularidade do sujeito. Nessa direção, Campos e Francischini (2003) afirmam:
[...]o processo de desenvolvimento consiste na internalização de regras, valores, modos de pensar e de agir ocorrentes nas interações sociais do cotidiano dos sujeitos, nas práticas sociais e discursivas que permeiam as instituições sociais (família, escola, igreja, trabalho...) e os meios de comunicação. Nessas interações, recorre-se aos instrumentos de mediação semiótica disponíveis na sociedade, entre os quais a linguagem ocupa posição privilegiada (p.120).

Desse modo, considerando as inter-relações e interdependências entre os aspectos físicos, cognitivos, sociais e emocionais nele presentes, o desenvolvimento é a transformação integral que se produz no sujeito a partir de sua inserção no mundo da cultura e das relações sociais. Assim, o desenvolvimento, compreendido como a emergência e consolidação das possibilidades de autonomia do sujeito, é, por essência, cultural. A ênfase ou quase exclusividade no/do domínio cognitivo, tão presente nos contextos educacionais, de modo geral, necessita, portanto, de revisão.
Aqui, o conceito de intersubjetividade, que vem sendo adotado por estudiosos da psicologia Histórico-Cultural, auxilia-nos na compreensão desse processo dinâmico, de inter-relações, na constituição do sujeito. Molon (2011) afirma que “a constituição do sujeito acontece no campo da intersubjetividade, configurado como o lugar do encontro e do confronto e como o palco de negociações dos mundos de significação privado e público” (p.618). A intersubjetividade configura-se, assim, como o estado de encontro onde o sujeito é constituído a partir da relação que estabelece com o outro.
A esse respeito, podemos identificar uma convergência de pensamento, na abordagem de Wallon.
Iniciando por uma citação do próprio autor, Wallon, H. (1941/2005), sobre a unidade do ser, o autor nos afirma: “é contra a natureza tratar a criança fragmentariamente. Em cada idade, ela constitui um conjunto indissociável e original. Na sucessão das suas idades, ela é um único e mesmo ser em curso de metamorfoses. Feita de contrastes e de conflitos, a sua unidade será por isso ainda mais susceptível de desenvolvimentos e de novidade (p.215). Ainda, nesta mesma obra, Wallon, sobre as inter-relações entre os domínios biológico e social na constituição do sujeito, o autor afirma: “Na realidade, nunca pude dissociar o biológico do social, não porque os julgues redutíveis um ao outro, mas porque me parecem no homem tão estreitamente complementares desde o seu nascimento, que é impossível encarar a vida psíquica sem ser sob a forma das suas relações recíprocas” (p.14). São diversos os contextos em que, ao longo de sua obra, Wallon trata da não dissociabilidade entre o sujeito e o meio e entre os domínios do desenvolvimento humano. A citação abaixo é um exemplar desses contextos, com a particularidade de que o autor trata da questão da linguagem, do qual nos ocuparemos abaixo.
A atividade humana é inconcebível sem o meio social; mas as sociedades humanas não poderiam existir sem indivíduos que possuem aptidões como a da linguagem, que supõe uma determinada conformação do cérebro, já que certos danos à sua integridade privam o indivíduo da palavra, do mesmo modo que, por falta de um cérebro semelhante ao do homem, não existe nenhuma outra espécie conhecida que tenha um sistema de sinais adaptável indefinidamente a novos significados, como são as línguas humanas. É, por conseguinte, impossível dizer se foi o homem que fez a sociedade ou se foi a sociedade que fez o homem (WALLON, 1942/2008p.118).

Conforme pode ser observado, o autor refere-se às especificidades da linguagem humana, ressaltando as relações de reciprocidade da atividade dos sujeitos no meio social. Isto é, as inter-relações significam o meio social; outrossim, a sociedade organizada por um sistema de signos e de interações constitui os seres humanos.
Os espaços educacionais são, por excelência, campos de exercício da intersubjetividade; nele, educadores, alunos e demais atores sociais são desafiados a conviverem com o conhecimento produzido ao longo da história e com as novas possibilidades que vão emergindo, sobretudo, na contemporaneidade, com as novas tecnologias e as transformações delas decorrentes; a confrontarem-se com modos de vida e de existências singulares, decorrentes das condições de vida desses sujeitos; enfim, a exercitarem o diálogo e a tolerância, considerando a diversidade, característica da sociedade, de modo geral, e que se reflete nesses espaços.

           
A linguagem
Considerada “processo psicológico superior” por excelência (Vigotski) e “um sistema de sinais adaptável indefinidamente a novos significados” (Wallon) a linguagem destaca-se como temática central e essencial, na Psicologia histórico-cultural de Vigotski e na Psicogenética de Wallon.
Para Vigotski (1931/2012c), o desenvolvimento da linguagem é a prova contundente da fusão dos planos de desenvolvimento natural e cultural do ser humano. Nessa mesma direção, Pino (1993) afirma que o estudo ontogenético da aquisição da linguagem está amplamente vinculado à concepção de sujeito na psicologia Histórico-Cultural.
A linguagem é o principal sistema de representação simbólica de todos os grupos humanos, sendo responsável pelo compartilhamento social entre os sujeitos das produções culturais, resultantes da atividade humana. Para Faraco (2013) a linguagem é uma atividade discursiva, uma ação responsiva, que reflete e refrata a interpretação que os sujeitos têm das coisas. Portanto, os discursos compartilhados socialmente estão sempre relacionados ao outro; revelam-se, portanto, como interdiscursos.  O surgimento da linguagem na história da espécie humana aparece como fundamental desde o início e esta função apresenta duas funções básicas importantes: “Devemos mencionar, ainda, que a linguagem é a princípio um meio de comunicação com os outros, e somente mais tarde, se torna uma forma de linguagem interna, se convertendo em um meio do pensamento, sendo assim fica evidente a aplicabilidade desta lei na história do desenvolvimento cultural da criança”. (Vigotski, 1931/2012b, p.147).
Assim, podemos observar, nesta afirmação de Vigotski, que a linguagem cumpre um papel central nas relações sociais e apresenta duas funções básicas: a primeira, de intercâmbio social, com a finalidade de estabelecer a comunicação entre os sujeitos; a segunda, de pensamento generalizante, isto é, o compartilhamento e organização do mundo real e social, entre os sujeitos, por meio de conceitos, categorias linguísticas e significações dentro de um universo de diversificadas realidades socioculturais.
Assim como em Vigotski, em Wallon a linguagem apresenta uma dupla função: a primeira, de intercâmbio social e, a segunda, como organizadora do mundo social, significando e representando a realidade objetiva, isto é, como condição do pensamento. Entretanto, diferentemente de Vigotski, em Wallon a linguagem estabelece, principalmente no início da vida, uma relação íntima e interdependente com as emoções, domínio a ser abordado mais adiante, neste trabalho. Nesse sentido, Bastos (2003) argumenta: “Linguagem que, na psicogenética Walloniana, tem suas primeiras formas de expressão intimamente ligadas à emoção, que é considerada o ponto de partida do psiquismo e por meio da qual o bebê entra em contato com o mundo humano e se torna capaz de comunicar-se” (p.132).
Essas duas funções da linguagem, concebidas tanto por Vigotski quanto por Wallon, estão presentes nos contextos educacionais. Não nos é possível, aqui, trazer à discussão as múltiplas possibilidades de se pensar esse sistema simbólico e sua presença nas inter-relações que comparecem nesses contextos. São diversos os olhares possíveis, com destaque para as discussões relacionadas aos processos de aquisição da leitura e da escrita, para as quais o leitor encontra uma extensa e rica bibliografia em nosso país, e para as questões, mais no campo da Sociolinguística, relacionadas ao ‘confronto’ entre a linguagem do cotidiano e a ‘linguagem culta’, predominante na escolarização formal.

As emoções
Iniciamos as discussões sobre o estudo das emoções, em Wallon (1941/2005), considerando a importância que esse domínio assume em sua abordagem, com uma afirmação do próprio autor: “Os primeiros contactos entre o sujeito e o ambiente são de ordem afectiva:  são as emoções” (p.201). Portanto, segundo o teórico, desde o início da vida os sujeitos realizam-se e tornam-se seres relacionais por meio das emoções. No princípio de existência estão tão intimamente unidos a elas que confundem-se com as situações do seu contexto, isto é, (...) “com o ambiente humano de que provêm, na maior parte das vezes, as situações emocionais” (p.201).
Nesse contexto de discussão é importante refletirmos sobre o que postula a teoria walloniana acerca das funções emoções, sentimentos e paixões (domínio afetividade). Como explica Dér (2010): “a afetividade é um conceito amplo que, além de envolver um componente orgânico, corporal, motor e plástico, que é a emoção, apresenta também um componente cognitivo, representacional, que são os sentimentos e a paixão” (p.61).
A primeira função a diferenciar-se no conjunto afetividade são as emoções, principalmente pela sua natureza primitivamente orgânica no início da vida; subsequentemente, diferenciam-se os sentimentos e, em seguida, a paixão. Por essa razão, para Wallon (1941/2005), no domínio afetividade os componentes emoções, sentimentos e paixões estão na dependência da idade. Em decorrência, a afetividade é um conceito mais abrangente em que as emoções, os sentimentos e as paixões se inserem, configurando-se como manifestações da vida afetiva (Galvão, 2011).
Para Wallon (1941/2005), as emoções são a exteriorização da afetividade. “As relações que elas tornam possíveis afinam os seus meios de expressão, e fazem deles instrumentos da sociabilidade cada vez mais especializados” (p.143). Nesse sentido, são os sentimentos que irão corresponder ao componente representacional das emoções, podendo, dessa maneira, expressarem-se pelo gesto, pela mímica e pela linguagem.
Wallon (1934/1971) explicita que no início da vida as relações do ser humano com o meio ainda estão circunscritas às premissas psicofisiológicas da sua vida afetiva isto é, do seu comportamento emocional. Diante disso, o autor relaciona três características diferentes sobre a origem das reações emocionais: de sensibilidade interoceptiva, proprioceptiva e exteroceptiva.[1]
Wallon, (1934/1971), ao discutir a natureza das emoções, explicita que esta temática tem motivado o surgimento de teorias diversas e, muitas vezes, contraditórias. Todas derivando de um princípio comum, e ao mesmo tempo, causa dessas contradições, isto é, ligam a emoção à atividade de relação motora com o meio, ou aos centros nervosos correspondentes. O teórico reconhece nas emoções o caráter de reações organizadas e de possuírem, no sistema nervoso, centros reguladores que coordenam as suas manifestações. Porém, para o autor, o ponto de partida das reações ainda primitivas das emoções está no domínio postural, melhor dizendo, na atividade tônica do organismo, nas suas atitudes visíveis ou, na origem da base de suas funções viscerais. Em suas próprias palavras: “O grito é a primeira manifestação de vida do recém-nascido. Sinal de aflição, segundo Lucrécio, diante da miséria da existência humana” (p.34). Ou seja, a sua primeira forma de linguagem expressiva: “para ela, o grito constitui o prelúdio à palavra” (p.35). Desde o início da existência o poder contagiante e mobilizador das emoções se manifesta. Por isso, para o teórico “o contágio das emoções é um facto comprovado frequentemente” (Wallon,1941/2005, p.141).
Seguindo a mesma linha de discussão, a psicogenética Walloniana propõe explicar as emoções numa perspectiva integral. Ou seja, as expressões das emoções e os seus fins sociais, logo, o caráter contagioso e coletivo que as mesmas podem exercer sobre os outros, ou por meio deles. Dessa maneira, Wallon (1975) ao refletir sobre a relação da criança com o ambiente social nos primeiros meses de vida, enfatiza a importância comunicativa e contagiante das emoções: “Os seus gestos e gritos tenderão a exprimi-las e a criar as reacções correspondentes no seu meio. Deste modo dá-se uma fusão dela com os próximos por meio duma espécie de consonância afectiva, que faz lembrar o caráter comunicativo das emoções” (p.155).
O autor afirma que a riqueza das expressividades emocionais das crianças nos meses posteriores de vida dependerá das diversidades e oportunidades de relações proporcionadas pelo contexto e, nesse sentido, a pessoa responsável pelos cuidados da criança, em boa parte das vezes, a mãe, desempenha um papel preponderante como mediadora, dada as condições de necessidade, nas quais se encontra a criança ainda pequena. Logo, na teoria walloniana o poder de contágio das emoções materializa-se nas relações sociais.
A respeito disso Wallon (1934/1971) tece o seguinte comentário: “A emoção necessita suscitar reações similares ou recíprocas em outrem e, inversamente, possui sobre o outro um grande poder de contágio” (p.91). Nessa direção, Dantas (1983) esclarece que emoção estabelece uma comunhão imediata dos sujeitos entre si e das suas relações com o meio, constituindo-se como o fundamento da intersubjetividade.
Desse modo, gradativamente, a partir de sua condição emocional primitivamente orgânica, a criança percorre um processo de desenvolvimento, concebido, como afirmado em outro contexto deste trabalho, como dialético, na construção de si enquanto sujeito social, onde as emoções transformam-se, ganhando um caráter eminentemente social. Em outros termos, as emoções desempenham um papel fundamental na consciência de si a partir do outro. Com isso, a família, a comunidade escolar e o entorno comunitário, como principais contextos sociais de inserção da criança, contribuem significativamente na sua construção enquanto um ser culturalmente e historicamente constituído. Para Gulassa (2010), a criança “comunica-se com seu grupo familiar por meio de reações emocionais. Estabelece uma comunhão afetiva, o que precede as relações das ideias (p.105). Desse modo, as emoções cumprem o papel de mediadora nas interações sociais, e, dessa forma, a criança constitui-se como ser de relação com o seu meio e com os grupos aos quais pertença.
Sendo assim, o estudo das emoções na teoria Walloniana ganha uma originalidade ímpar, visto que elege o papel primordial da afetividade na constituição e na evolução do sujeito. Portanto, a psicogênese da pessoa completa evidencia o caráter primordial das emoções em seus pressupostos teóricos, epistemológicos e ontológicos. Para Wallon é por meio das emoções que a condição biológica do ser humano se converte em social. Isto posto, como afirmamos anteriormente, as emoções têm uma base orgânica, contudo, para o autor, apresenta um caráter social que permite a criança maximizar e especializar suas relações humanas e sociais. Desse modo, de acordo com Almeida (2012), a emoção constitui-se como um fenômeno dinâmico que ultrapassa sua condição primária de estado orgânico, cumprindo uma função mediadora na socialização dos sujeitos.     
            Em relação ao estudo das emoções, em Vigotski, duas observações introdutórias são necessárias: a primeira diz respeito ao fato de serem recentes, no Brasil, os estudos das emoções na perspectiva histórico-cultural; a segunda nos alerta para a necessidade de não dissociação entre o estudo das emoções e o conceito de vivência.
            Iniciando pelo conceito de vivência, para (Vigotski, 2010):
A vivência é uma unidade na qual, por um lado, de modo indivisível, o meio, aquilo que se vivencia está representado – a vivência sempre se liga àquilo que está localizado fora da pessoa – e, por outro lado, está representado como eu vivencio isso, ou seja, todas as particularidades da personalidade e todas as particularidades do meio são apresentadas na vivência, tanto aquilo que é retirado do meio, todos os elementos que possuem relação com dada personalidade, como aquilo que é retirado da personalidade, todos os traços de seu caráter, traços constitutivos que possuem relação com dado acontecimento. Dessa forma, na vivência, nós sempre lidamos com a união indivisível das particularidades da personalidade e das particularidades da situação representada na vivência. (p.687).

Vigotski (1933/2012d) explica que a vivência cumpre uma dinâmica biossocial, e, nesse sentido, é algo que se situa entre o sujeito e o contexto, estabelecendo, portanto, uma condição de intermédio entre ambos. Esta relação cumpre a função de revelar o significado, para o sujeito, do momento vivido e de que modo os aspectos do meio influenciam o seu desenvolvimento.  Dito de outro modo, para Vigotski, a vivência expressa, de maneira clara, duas dimensões: a dimensão da influência do meio no sujeito, por um lado, e, por outro, o modo como o sujeito vive essa dinâmica ao manifestar, naquele momento específico, a sua singularidade, construída ao longo do seu desenvolvimento histórico-social. Assim, durante o processo de seu desenvolvimento histórico, o sujeito realiza uma série de vivências, que são reguladas pelas diferentes relações intersubjetivas, que se sucedem nos diversos momentos e espaços dos contextos desse desenvolvimento. O esboço do conceito de vivência, acima, é condição necessária para entendermos o estudo das emoções em Vigotski, a seguir.
Como dizem os autores (Machado, Facci, & Barroco, 2011), mesmo existindo poucas evidências sobre o estudo das emoções em Vigotski, esta temática perpassa todos os trabalhos escritos pelo autor, inclusive aqueles que não são de cunho psicológico (no entendimento dos autores acima citados) como A tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca (1916) e Psicologia da Arte (1925), nos quais o autor analisa o fenômeno da reação estética, ou seja, o que acontece quando o ser humano se emociona diante de uma obra de arte. Nessa mesma direção, Toassa (2011) afirma que no livro Psicologia da Arte, Vigotski realiza um prenúncio de suas críticas realizadas na obra Teoria das Emoções, às correntes psicológicas que compreendiam as emoções como fenômenos perceptuais e fisiológicos originárias de mecanismos estímulo-resposta.
A principal publicação de Vigotski sobre esse trabalho foi sua obra Teoria das Emoções: estudo histórico-psicológico[2], escrita entre 1931 a 1933 e deixada inacabada pelo autor, possivelmente, devido a sua condição debilitada de saúde.
Para Vigotski, o ponto de vista das teorias psicológicas organicistas sobre as emoções e seu desenvolvimento no sujeito não era suficiente para a explicação dos complexos fatores nela implicados.
Segundo a perspectiva histórico cultural por ele delineada, o desenvolvimento histórico das emoções consiste fundamentalmente, na ação, em que se alteram as conexões inicias em que foram produzidas e, consequentemente, surge uma nova ordem e novas conexões. Complementando esta ideia, Vigotski concebe a importância das emoções, elevando-as para um plano superior da vida psicológica, tirando-as, portanto, de um lugar de processos fisiológicos da ordem das funções psicológicas inferiores, como são concebidas em uma concepção naturalista de seu desenvolvimento. Como explica, Machado et al. (2011): “Para Vigotski, as emoções são funções psicológicas superiores, portanto, culturalizadas e passíveis de desenvolvimento, transformação ou novas aparições. Além disso, a concepção vigotskiana de emoção coloca esse processo psicológico em estreita relação com outros do psiquismo humano” (p.651). Ainda em Machado et al., temos a afirmação de que o autor bielorrusso compreende “as emoções como formadas a partir de condições histórico-culturais, portanto, aprendidas em determinado contexto” (p.651), desempenhando uma atividade mediadora, ao cumprir uma função de intermédio entre o sujeito e o seu contexto histórico-social.
Para Vigotski (1930/2013), as emoções concebidas como processos psicológicos superiores surgem somente na condição histórica, sendo o resultado das relações intersubjetivas entre os sujeitos. Neste fato reside o processo de desenvolvimento das emoções.
Machado, et al. (2011) afirmam que em diversas culturas as emoções são expressas em signo (palavra, gesto) modificando-se e ganhando continuidade na intersubjetividade, tendo a linguagem um papel central como organizadora das mesmas.  Em vista disso, os sentimentos (dimensão psicológica das emoções) são emoções que ganham significado por meio da linguagem, e, em diferentes contextos participam do processo de desenvolvimento sociocultural dos sujeitos (Costa & Pascual, 2012).
Isto posto, para esses autores, no processo de desenvolvimento os sujeitos estabelecem intercâmbios sociais, portanto, comunicam-se e aprendem socialmente a significar suas emoções (sentimentos), constituindo sua condição, enquanto sujeitos, histórico-sócio-emocionais.  Sendo assim, as palavras organizam e materializam as emoções, desvencilhando-as do mundo interno dos sujeitos e expressando-as em sua realidade externa (conjunto de relações sociais). Nessa direção destacamos as palavras de Machado, et al. (2011): "as concepções de linguagem e emoção estão imbricadas pelo colorido emocional que acompanha cada palavra, situado no tempo e na história” (p.652).
Como mostra Brossard (2012), as emoções humanas têm um caráter eminentemente cultural e significante, ou seja, vão sendo organizadas dinamicamente de acordo com o meio social no qual o sujeito está inserido e são essências para o seu desenvolvimento. Nesse sentido, se constroem, se transformam, se significam, se ressignificam.
Cabe-nos destacar, desse modo, a necessidade de uma concepção de sujeito que leve em consideração o desenvolvimento social das emoções, e que a vida emocional ganhe um lugar central em seu processo de constituição. Para este mesmo autor, as expressões emocionais (risos, choros) são materializações da experiência emocional do sujeito, isto é, a dimensão afetiva de como ele viveu e experimentou dada situação ou evento. Desta maneira, o desenvolvimento é compreendido essencialmente como uma transformação de relações interfuncionais e de mudanças nessas relações e, portanto mudanças de posição do sujeito (relação dialética). Desse modo, as emoções diferenciam-se e transformam-se no decorrer do desenvolvimento em alterações ou mudanças de posição dos sujeitos no centro do sistema das funções vividas nos diferentes contextos.

Considerações Finais
            Do exercício aqui proposto, podemos observar que esses autores, ao investigarem os processos de constituição/desenvolvimento do sujeito, trouxeram reflexões ímpares e complementares que contribuem, sem sombra de dúvidas, para se pensar os contextos educacionais, suas especificidades, seu tempo e espaço de inserção na sociedade e, principalmente, as inter-relações presentes nesses contextos, com ênfase naquelas estabelecidas pelo sujeito aprendiz, objetivo último das aprendizagens.
Em relação à perspectiva epistemológica, as duas vertentes teóricas alicerçam-se no pensamento Marxista; o método dialético, guardadas as especificidades de cada um desses teóricos, desempenhou uma influência substancial no desenvolvimento e desdobramentos de suas teorias. Mesmo assim, as duas perspectivas convergem num ponto fundamental: a relevância do meio social no desenvolvimento, constituição e construção dos sujeitos.
Ainda sobre o ponto de vista epistemológico, os dois teóricos criaram, a partir de um inovador enfoque metodológico, uma nova psicologia geral. Desse modo, estes autores se opuseram aos paradigmas psicológicos naturalizantes e biologizantes acerca do fenômeno psicológico e, consequentemente, contrários à compreensão reducionista acerca da ontologia do sujeito. Assim, ambos concebem o processo de constituição do sujeito em sua relação intima com o outro, tornando sua constituição substancialmente social. Desse modo, ambos os autores convergem na compreensão de que a constituição e desenvolvimento histórico dos sujeitos acontece no campo da intersubjetividade.
Assim, Psicologia e Educação mostram-se como campos de observação, de questões para investigação, de construção de conhecimento e de instrumentos de aprimoramento de nossas práticas no cotidiano dos contextos educativos. Esta constatação oferece elementos para pesquisas interdisciplinares entre o conhecimento psicológico e educacional fundamentadas na perspectiva histórico-cultural de Vigotski e na psicologia psicogenética de Henri Wallon.
            Esperamos, com as reflexões aqui sugeridas, contribuir para a construção de conhecimento, reconhecendo que essa construção só ganha importância e valor quando pode ser socializada e fazer emergir inquietações suficientes para moverem possíveis estudos e teorizações sobre essas duas abordagens cujo legado, sem dúvidas, enriquece nosso pensamento a respeito dos processos educacionais.

Referências
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[1] Não será, aqui, detalhada cada uma dessas reações. Ao leitor interessado, remetemos à Wallon, 1934/1971)
[2] De acordo com Sawaia (2000), o título original da obra Teoria das Emoções (1931 – 1933) é: Espinosa e sua teoria dos afetos-prolegômenos à Psicologia do Homem. Todavia, mesmo com a referência à Espinosa no título original do livro esse autor não conseguiu realizar uma análise profunda da filosofia de Espinosa; na maior parte dos capítulos tece críticas às teorias psicológicas sustentadas pela filosofia de Descartes. Não obstante, o próprio Vigotski afirma, no prefácio de Psicologia da Arte (1925), que o seu pensamento constituiu-se sob o signo das palavras de Espinosa.

CONCEPÇÃO DE CRIANÇA EM GESTALT-TERAPIA: DIÁLOGOS COM A SOCIOLOGIA DA INFÂNCIA

CONCEPÇÃO DE CRIANÇA EM GESTALT-TERAPIA: DIÁLOGOS COM A SOCIOLOGIA DA INFÂNCIA

Eudes Alencar[1]
Rosângela Francischini[2]


Resumo:
O presente trabalho tem como propósito discutir e estabelecer diálogos acerca da concepção de criança em Gestalt-terapia e suas aproximações possíveis com a Sociologia da Infância. Em função disso, realizaremos algumas considerações sobre: os pressupostos históricos dessa abordagem e o significado da palavra Gestalt; as influências da filosofia fenomenológica, do existencialismo dialógico e da teoria de campo nessa vertente psicológica; os pressupostos epistemológicos construídos a partir da interação (contato-experiencia) do sujeito com o contexto, destacando os conceitos centrais da abordagem gestáltica. Discutiremos a concepção de sujeito/criança em Gestalt-terapia estabelecendo um diálogo com alguns pressupostos da Sociologia da Infância.
Palavras-chave: concepção de criança; sociologia da infância; gestalt-terapia.

Gestalt-terapia: pressupostos históricos, filosóficos e epistemológicos

A Gestalt-terapia configura-se como uma abordagem psicológica construída filosoficamente a partir de pressupostos existenciais e fenomenológicos, fundada oficialmente por Friederich Salomon Perls (1893 - 1970), mais conhecido como Fritz Perls, e Laura Perls (1905 - 1990), em torno dos anos 40 (Ginger e Ginger,1995, Yontef, 1998). Alguns autores, consideram o nascimento e o batismo oficial da Gestalt-terapia datada no ano 1951, em Nova York, por ocasião do lançamento do livro Gestalt-Theraphy[3]. Portanto, podemos afirmar que essa vertente emergiu, oficialmente, no contexto da sociedade americana (Ginger e Ginger,1995). No entanto, por serem seus principais representantes de origem alemã, os antecedentes históricos dessa abordagem são europeus.
Iniciamos por tentar compreender o significado da palavra Gestalt. Este termo, alemão, por não apresentar um significado equivalente em outras línguas, é utilizado em publicações científicas com a tradução “forma” ou equivalentes. Nessa direção, Ginger e Ginger (1995) afirmam: “Gestalten significa ‘dar forma, dar uma estrutura significante’.”  Esse mesmo autor continua: “Na realidade, mais do que Gestalt, exato seria dizer Gestaltung, palavra que indica uma ação prevista, em curso ou acabada, que implica um processo de dar forma, uma ‘formação’” (p.13). Portanto, essa palavra revela e focaliza mais o processo do que uma estrutura de conformação.
Como assinalamos anteriormente, a abordagem gestáltica está ancorada filosoficamente na fenomenologia[4] (Edmund Husserl, Merleau-Ponty, Martin Heidegger) e no existencialismo dialógico[5] (Martin Buber), sendo também fundamentada na teoria de campo[6] (Kurt Lewin). Nesse sentido, Yontef (1998) entende que a Gestalt-terapia é definida por três princípios fundamentais: O primeiro, enquanto perspectiva fenomenológica, refere-se à awareness[7] (consciência), como único objetivo e metodologia dessa abordagem psicológica; o segundo, refere-se a sua fundamentação teórica, sendo uma terapia baseada no existencialismo dialógico, qual seja, o processo relacional de contato do sujeito com o outro; o terceiro e último, refere-se ao seu fundamento conceitual, isto é, alicerça-se numa concepção holística[8] e na teoria de campo. Em vista disso, Lizias (2010) afirma que esses três princípios formam o alicerce epistemológico da Gestalt-terapia, razão pela qual a prática gestáltica precisa estar articulada e ancorada congruentemente nos pressupostos e componentes de seu arcabouço teórico e filosófico. Desse modo, ao referir-se a Friederich Perls, principal representante da abordagem gestáltica, este mesmo autor atesta:
se não fosse a genialidade de Perls, seu talento profético e sua visão de mundo ao colocar a Gestalt-terapia num paradigma holístico e dialético, estaríamos sendo consumidos por uma concepção de conhecimento da relação sujeito-objeto (condição fundamental de qualquer epistemologia) cristalizada por uma teoria obsoleta que não daria conta de umas práxis terapeuta da atualidade (p.51)
Nesse mesmo percurso, Robine (2006) afirma que “a gestalt-terapia é um sistema teórico e metodológico composto, que se originou da psicanálise, da psicologia da Gestalt e da fenomenologia, e aliás, de algumas de suas extensões, do lado dos existencialismos” (p.21). Para este autor, essas diferentes perspectivas teóricas constituem a herança da Gestalt-terapia e, de maneira integrada, contribuíram para o surgimento de uma nova configuração teórica.
Ainda em relação às bases filosóficas, epistemológicas e teóricas da Gestalt-terapia, Lizias (2010) argumenta que é possível perceber no cenário nacional e internacional da abordagem gestáltica, uma diversidade de elementos conceituais que podem suscitar diferentes práticas clínicas. Estas diversas linhas do pensar e do fazer gestalt-terapia, como já mencionamos, estão sustentadas por distintas teorias de conhecimento e determinados sistemas filosóficos. Desse modo, justificamos a necessidade de uma reflexão por parte dos gestalt-terapeutas em relação às bases teóricas que sustentam suas práticas clínicas. Essa é uma discussão que se mostra muito ampla, e que, dadas as dimensões deste estudo, não será possível aborda-la. Assim, seguindo os propósitos deste artigo, gostaríamos de realizar algumas reflexões sobre a concepção de sujeito/criança em gestalt-terapia.

Concepção de sujeito/criança na Gestalt-terapia – aproximações com a Sociologia da Infância
Antes de introduzirmos o estudo sobre a concepção de criança em Gestalt-Terapia, é preciso tecermos algumas considerações sobre a abrangência dos estudos acerca do sujeito gestáltico e sua relação com o meio. Em um primeiro plano de reflexão, Perls, Hefferline, e Goodman (1951/1997) afirmam: “Em toda e qualquer investigação biológica, psicológica ou sociológica temos de partir da interação entre organismo e seu ambiente” (p.42). Nessa mesma direção, Robine (2006) explicita que a concepção de sujeito em Gestalt-terapia leva em conta o pressuposto de que os fatores biológicos, fisiológicos e socioculturais são elementos constituintes do ser humano. Isto posto, o indivíduo pertencente à espécie humana procede de fatores biológicos; todavia, não é reduzido a essa natureza, sendo, também, constituído em sua condição social, a partir das relações dinâmicas com outrem nos diversos contextos nos quais encontra-se inserido. A respeito da relação dialética entre pessoa-meio, Perls (1988) explicita:
O meio não cria o indivíduo, nem este cria o meio. Cada um é o que é, com suas características individuais, devido a seu relacionamento com o outro e o todo (. . .) ninguém é auto-suficiente; o indivíduo só pode existir num campo circundante. É, inevitavelmente, a cada momento, uma parte de algum campo[9]. Seu comportamento é uma função do campo total, que inclui a ambos: ele e seu meio”. O tipo de relação homem/meio determina o comportamento humano (. . .) com esta nova perspectiva, organismo e meio se mantêm numa relação de reciprocidade. Um não é a vítima do outro. Seu relacionamento é, realmente, o de opostos dialéticos. Para satisfazer suas necessidades, o organismo tem que achar os suplementos necessários no meio” (pp.31-32)
Em relação a essa citação, Perls ressalta o caráter singular da constituição do sujeito gestáltico que interage, em sua totalidade, com o campo em toda sua plenitude física e social. Portanto, esta interação é dinâmica e nutritiva, atendendo as necessidades organísmicas da pessoa, considerando as peculiaridades de sua constituição. Perls et al., (1951/1997) explicita que “não tem sentido, por conseguinte, tentar lidar com qualquer comportamento psicológico fora de seu contexto sociocultural, biológico e físico” (p.46).
Nesse mesmo ponto de vista Ribeiro (2009) nos convida a conceber o comportamento do sujeito gestáltico como resultante de uma relação mutuamente interdependente entre pessoa e meio. Assim sendo, para esse autor, no estabelecimento da relação dialética pessoa/meio “nada fica excluído. Tudo fica incluído e tudo se relaciona com o tudo neste universo existencial, experiencial e experimental” (p.68); portanto, os fatores psicológicos e não-psicológicos do contexto são os determinantes que configuram a singularidade do tipo de relação que o sujeito estabelecerá com o meio.
De acordo com Aguiar (2014), a Gestalt-terapia concebe o sujeito como uma unidade: holística, relacional, contextualizada, portanto, constituído e construído a partir de uma realidade sendo atravessado por todos os elementos presentes no campo contextual e que dinamicamente afetam sua relação intrapessoal e interpessoal.  Esta mesma autora continua: “Assim, quando falamos de relação em Gestalt-terapia, referimo-nos a uma interação constante, na qual o ser humano é transformado, construído e constituído pelo meio, mas também influencia, modifica e transforma esse meio, deixando a sua ‘marca’ e tornando-o assimilável e provido de significado” (p.31-32). Ainda sobre a relação sujeito/meio, Ribeiro (2009) nos apresenta o conceito de Espaço Vital, como “a totalidade dos fatos ou eventos possíveis, coexistentes e mutuamente interdependentes, os quais determinam o comportamento de um indivíduo em dado momento, sendo eles partes constituintes da realidade e não apenas partes ou um conjunto aditivo, podendo ser expressos matematicamente” (p.68). À vista disso, o espaço vital é dinâmico, estabelecendo inter-relações entre todos os fatores e eventos envolvidos num dado momento acerca da relação do sujeito com o meio. Sendo assim, esse autor compreende que, para a Gestalt-terapia, a realidade da criança, principalmente das pequenas, é em relação ao adulto, essencialmente mais o presente, e menos o passado e o futuro, seu mundo espaço-temporal expressa-se no seu corpo e na forma como sente e experimenta a realidade. Por isso, as crianças são seres, presentificados, inteiros, com toda a riqueza relacional, espontâneas e transparentes, interagindo com o mundo numa dinâmica, integrada, entre suas emoções, cognições, motricidade, percepções e sentidos.

Em relação às discussões e reflexões sobre a concepção de criança em Gestalt-terapia é importante mencionarmos que ainda são poucos os estudos sistematizados dentro de uma perspectiva gestáltica, com crianças (Aguiar, 2014). Um segundo ponto a destacar é que o modo pelo qual a Gestalt-terapia concebe a criança é indissociável dos pressupostos filosóficos e epistemológicos que sustentam as bases dessa abordagem psicológica. Em vista disso, Lizias (2010) afirma: “Elementos como contato, awareness e campo organismo/meio formam o arcabouço teórico principal da Gestalt-terapia. Conjugando-os de forma coerente e em constante interface com os fundamentos de base, podemos conhecer o savoir-faire gestáltico com crianças” (p.63). De acordo com Aguiar (2014), é fundamental vincular o trabalho com crianças a uma concepção de sujeito que considere sua natureza relacional, histórica e social. Essa nova visão aproxima-se do campo da Sociologia da Infância, propondo um importante desafio teórico-metodológico: conceber as crianças como atores sociais plenos e como sujeitos de direitos, situando-as numa concepção global, integral e interdependente, sendo sua relação com o meio manifestada pela idiossincrasia de sua unicidade enquanto sujeito (Delgado e Müller, 2005).
Portanto, a metodologia e as técnicas gestálticas compartilham com a compreensão de que não existe apenas uma criança, mas tantas quantas possam emergir, a partir dos diferentes contextos nos quais vivenciam sua infância.[10] Nesse sentido, Qvortrup (2011), um dos principais teóricos da Sociologia da Infância, nos lembra que todas as sociedades têm a infância como traço constante em sua estrutura social, que diz respeito ao grupo geracional. No entanto, as diversidades culturais, sociais e históricas, as alterações a que estão sujeitas as sociedades (legislativas, políticas, econômicas, dentre outras) fazem com que as crianças, sujeitos que vivenciam essa condição de infância, o façam de formas igualmente diversificadas e em constantes modificações.  Na mesma direção, Sarmento (1997) afirma: “(...) ‘ser criança’ varia entre sociedades, culturas e comunidades, pode variar no interior da fratria de uma mesma família e varia de acordo com a estratificação social. Do mesmo modo, varia com a duração histórica e com a definição institucional da infância dominante em cada época” (p. 17). Nesse mesmo seguimento, Lizias (2010) confirma: “Outra questão que deve ser observada é que não se pode falar de criança no singular, já que existem tantos modos de ser e existir da condição infantil quanto são as estrelas no firmamento” (p.52). Em vista disso, a abordagem gestáltica situa o ser humano a partir de uma concepção integral e não fragmentada da realidade circundante. Isto é, a criança é concebida holisticamente como uma totalidade articulada às especificidades dos diferentes contextos.
Frente a essa concepção de criança, é importante ressaltar que a Gestalt-terapia não nega a normatividade desenvolvimental do ser humano, ou seja, o que há em comum no comportamento entre os sujeitos nas diversas faixas etárias.  Nessa mesma linha de discussão, Lizias (2010) explica: “O problema, no que diz respeito às crianças, é querer percebê-las como teorias de desenvolvimento que precisam ser atualizadas para que possam dar conta do sujeito-criança que emerge, cada vez mais, com novas cores e formas” (p.51) Não obstante, interessa para essa abordagem, a compreensão da idiografia acerca das regularidades comportamentais que configuram a criança como um ser único e irrepetivel. Posto isto, esta abordagem situa a criança numa concepção global, integral e interdependente, sendo sua relação com o meio manifestada pela idiossincrasia de sua unicidade enquanto sujeito. Nesse sentido, Aguiar (2014) afirma: “Assim, a criança, tal como a percebemos, é vista como um ser total ou global, o que implica considerar uma inevitável vinculação, reciprocidade e retroalimentação entre fatores emocionais, cognitivos, orgânicos, comportamentais, históricos, culturais, geográficos e espirituais” (p.29). Por conseguinte, ainda para esta autora, esses fatores caracterizam-se por serem dinâmicos, interdependentes e intimamente articulados, ou seja, não podem ser compreendidos isoladamente.
Nesse contexto de discussão, gostaríamos de realizar algumas considerações sobre ética na prática gestáltica com crianças. Para Lizias (2010) “O desafio de quem educa ou trabalha com crianças é conseguir encontrar uma postura ética ao incluir-se no mundo fenomenológico da criança e não considerar a percepção desta da mesma maneira que acontece no modo do adulto perceber o mundo” (p.54).[11] Isto é, a maneira como a criança generaliza e compreende os diversos eventos do meio circundante é diferente da forma como os adultos abstraem essas mesmas situações. As crianças não são objetos de observação do método gestáltico; ao contrário, são partícipes do seu processo de constituição enquanto sujeitos ativos e relacionais. Sendo assim, esse mesmo autor argumenta: “As crianças estão muito mais para ensinar à Gestalt-terapia a maravilha da vivência no presente transiente com sua espontaneidade e potencial criativo do que para serem pensadas como objetos de análises” (p.62). Igualmente, os “novos estudos da Infância” que têm a Sociologia da Infância como um locus representativo de discussão, vem contribuindo por posicionar as crianças como seres em constante construção, considerando as condições, as peculiaridades, enfim, as vivências que cada criança experiencia em sua infância que, em termos da Gestalt-terapia, significa conceber a criança a partir de uma visão holística de sujeito: histórico, cultural e social.
Justo por isso, as crianças são concebidas como autônomas em suas ações, em seus pensamentos, na forma como constroem conhecimento e interagem com os outros. Nesse seguimento, Ribeiro (2009) confirma: “O modo de desenvolvimento, na criança ou no adulto, apresenta sempre um processo de diferenciação e integração” (p.148) que garante, como já mencionamos, sua singularidade na forma de experienciar e experimentar os diferentes significados que se manifestam a partir de sua realidade concebida holisticamente. Diante disso, a gestalt-terapia compreende a criança como um ser relacional, ou seja, se constitui por meio da relação com o outro, sendo, portanto, um ser que se diferencia do outro, mas, inevitavelmente está ligado ao outro (Aguiar, 2014).
Nessa busca em compreender a criança enquanto um ser relacional, Yontef (1998) adverte: “A criança necessita de um relacionamento parental com um equilíbrio organismico/ecológico nutritivo. Por exemplo, a mãe deve cuidar para que as necessidades da criança sejam atendidas e para que o desenvolvimento de suas potencialidades seja facilitado. A criança necessita desse modelo carinhoso e nutritivo para se espelhar. Ela também precisa de espaço para lutar, ficar frustrada e falhar. Além disso, precisa de limites para experienciar as consequências de seu comportamento” (p.46). Consequentemente, no contexto relacional dos diversos arranjos familiares e dos diferentes tipos de famílias organizadas por distintas redes de relações é que a criança constitui-se enquanto sujeito relacional. Nas palavras do próprio Perls, (1988)
O problema real começa quando os pais interferem na maturação da criança, ou mimando-a e interrompendo suas tentativas de descobrir seus próprios pontos de apoio, ou sendo superprotetores, e destruindo sua confiança em sua habilidade de se autobastar, dentro dos limites de seu desenvolvimento. Encaram a criança como uma coisa que possuem para ser protegida ou exibida (p.84).
Em vista disso, Aguiar (2014) explicita “Assim, podemos afirmar que em Gestalt-terapia a relação é o cerne da construção da possibilidade de reconstrução do ser humano” (p.40). Dessa forma, no espaço das configurações familiares as crianças constroem estruturas cognitivas, emocionais e sociais e assim, podem imergir no mundo social com toda a riqueza de possibilidades de sua condição humana.  Para Antony (2012) “a criança é um todo, mas também é uma parte que pertence a um todo – família – que está inserida em um outro todo – a sociedade, a escola – compondo uma rede de conexões interminável” (p.25). Portanto, a família, enquanto estrutura primária da sociedade, permeada por valores, normas e diversidades culturais, cumpre sua função enquanto espaço constitutivo da criança.
Em suma, a Gestalt-terapia com crianças destaca-se como uma abordagem de base holística, enfocando o caráter dialético relacional pessoa/meio, compondo uma unidade integrada e interdependente entre os fatores biológicos, psicológicos e sociais (Antony, 2012 e Woodhead,1997). Assim sendo, para Antony (2012): “A criança é uma gestalt neuropsicomotora indissociável e original em desenvolvimento que necessita ser vista como um todo unificado, a fim de ser compreendida em seu processo singular de tornar-se sujeito e artista de sua existência” (p.27). Destarte, não há espaço para concepções individualistas, reducionistas e naturalizantes sobre a criança, concepções essas igualmente criticadas pela Sociologia da Infância, que afirma serem, as crianças, atores sociais (Prout and James, 1990), com competências para criar e modificar culturas, mesmo estando inseridas no mundo adulto (Delgado e Müller, 2005). Outrossim, as crianças para a Gestalt-terapia são um universo presente de possibilidades, artífices em seu processo de construção desenvolvimental e constituídas singularmente por suas experiências e experimentações do sabor único de viver e ser criança.


Referências

Aguiar, L. (2014). Gestalt-terapia com crianças: teoria e prática. São Paulo: Summus.

Antony, S. M. R. (2012). Gestalt-terapia: cuidando de crianças, teoria e arte. Curitiba: Juruá.

Delgado, A.C.C.; Müller, F (2005). Apresentação: “Sociologia da infância: pesquisa com crianças”. Educação & Sociedade, Campinas, v. 26, n. 91, p. 351-360, maio/ago.

Francischini, R., Fernandes, N. (2016). Os desafios da pesquisa ética com crianças. Estudos de Psicologia (Campinas), Campinas, v. 33, n. 1, p. 61-69, jan./março.

Ginger, S., Ginger, A. (1995). Gestalt-terapia: uma terapia do contato (5ª ed., S. Rangel, Trad.). São Paulo: Summus. (Trabalho original publicado em 1987)

Lizias, S. (2010). Epistemologia gestáltica e a prática clínica com crianças. In: S. Antony (org). A clínica gestáltica com crianças: caminhos de crescimento (pp. 47 – 77). São Paulo: Summus.

Perls, F., Hefferline, R., e Goodman, P. (1997). Gestalt-terapia (3a ed., F. R. Ribeiro, Trad.). São Paulo: Summus. (Trabalho original publicado em 1951).

Perls, F. S. (1977). Gestalt-terapia explicada (11ª ed. G. Schlesinger, Trad.). São Paulo: Summus. (Trabalho original publicado em 1969).

Perls, F. (1988). A abordagem gestáltica e testemunha ocular (2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar. (Trabalho original publicado em 1973)

Prout, A. and James, A. (1990). “A New paradigma for the sociology of childhood? Provenance, promise and problems”. In A. James and A. Prout (eds). Constructing and Reconstructing Childhood. Basingstoke: Falmer Press.

Qvortrup, J. (2011). “Childhood as a Structural Form”. In J. Qvortrup, W. A. Corsaro and M-S. Honig (ed.), The Palgrave Handbook of Childhood Studies. UK.

Ribeiro, J. P. (2009). Gestalt-terapia de curta duração (7a ed.). São Paulo: Summus.

Robine, J. M. (2006). O self desdobrado: perspectiva de campo em gestalt-terapia. São Paulo: Summus.

Sarmento, M. J. e Pinto, M. (1997). As crianças e a Infância: definindo conceitos, delimitando o campo. In M. Pinto e M. J. Sarmento. (coord). As crianças – contextos e identidades. Braga, Universidade do Minho.

Woodhead, M. (1997) “Psychology and the cultural construction of children’s needs”. In A. James and A. Prout (eds). Constructing and Reconstructing Childhood. Basingstoke: Falmer Press.

Yontef, G. M. (1998). Processo, Diálogo e Awareness: ensaios em gestalt-terapia (3ª ed., E. Stern, Trad.). São Paulo: Summus. (Trabalho original publicado em 1993)





[1]  UNI-RN, Brasil, E-mail: eudesjr@gmail.com
[2] UFRN, Brasil, E-mail: rofrancischini@gmail.com
[3] Perls, F., Hefferline, R. F., and Goodman, P. (1951). Gestalt therapy: Excitement and growth in the human personality. Nova York.
[4] A fenomenologia, como filosofia, estuda o fenômeno em si, a essência, ponto final e irredutível de nossas percepções e o desvendamento do nosso objeto de procura do conhecimento. É um conhecimento a priori, uma ontologia que estuda o ser, universal ou individual, como dado para nossa consciência” (Ribeiro, 2009, p.43).
[5] Um dos principais representantes do existencialismo dialógico é Martin Buber (1878 – 1965). Sua filosofia é considerada dialética, por tratar das questões relacionadas à totalidade da existência humana.
[6] Teoria do campo, de Kurt Lewin (1890- 947) descreve a relação integrada e integradora da pessoa-campo (meio, ambiente, contexto). A noção de campo (pessoa/meio) constitui o pressuposto fundamental dessa teoria (Ribeiro, 2009).
[7] “Awareness: consciência, conhecimento, percepção, tomada de consciência, compreensão, sensação de presença, presentificação. Não existe tradução perfeita para o português, e a palavra awareness será traduzida de distintas maneiras dependendo do contexto em que se encontra” (Perls, 1977, p.30).
[8] Visão holística em Gestalt-terapia significa a integração e a unidade bio-psico-social do ser humano. Portanto, a concepção de um organismo como um sistema totalizante e interdependente em sua constituição.
[9] “O campo é um todo, no qual as partes estão em relacionamento imediato e reagem umas às outras, e nenhuma deixa de ser influenciada pelo que acontece em outro lugar do campo. O campo substitui a noção de partículas discretas, isoladas. A pessoa em seu espaço vital constitui um campo” (Yontef,1998, p.17).
[10] Categoria geracional a qual pertencem as crianças (seres concretos).
[11] Em relação à postura ética no trabalho com crianças, convidamos o leitor a recorrer ao artigo Os desafios da pesquisa ética com crianças. (Francischini & Fernandes, 2016)

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