domingo, 30 de abril de 2017

PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO: contribuições de Vygotsky e Wallon

PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO: contribuições de Vygotsky e Wallon
Eudes Alencar (UNI-RN)
Rosângela Francischini (UFRN)
Introdução
Este capítulo é um recorte de uma pesquisa desenvolvida como requisito para conclusão de curso de pós-graduação (mestrado), que teve por objetivo responder a seguinte questão: “Como se caracteriza o processo de constituição do sujeito na relação com a alteridade, à luz da perspectiva histórico-cultural de Vigotski e na psicologia psicogenética de Henri Wallon, considerando as convergências, divergências e (im) possibilidades de complementariedades conceituais entre essas duas abordagens teóricas”? (ALENCAR, 2016, p. 12). Assim caracterizado, alguns segmentos deste texto são semelhantes, mesmo idênticos, àqueles presentes na dissertação; outros segmentos, modificados e, outros ainda, acrescentados, considerando o objetivo aqui desenhado, de enfatizar os aspectos que contribuem para a compreensão da constituição do sujeito nos múltiplos contextos de seu desenvolvimento, o que se estende para os contextos educacionais.
A perspectiva histórico-cultural de Vigotski e a psicologia psicogenética de Henri Wallon são concepções de base marxista; adotam, portanto, o materialismo dialético como método. Vigotski e Wallon, a partir de suas perspectivas teóricas, contribuíram significativamente no estudo do desenvolvimento humano, com ênfase para o desenvolvimento do pensamento, da linguagem e das emoções, aspectos esses, relevantes na área da Psicologia e da Educação. Nos contextos educacionais, de modo geral, com a mediação dos signos (com destaque para o signo linguístico), busca-se, dentre outros objetivos, o desenvolvimento do pensamento, a formação da consciência. Nesse processo, o componente afetivo, das emoções, não pode ser negligenciado. Observa-se um destaque desse aspecto em Wallon. Em Vigotski, mais recentemente viu-se crescer também o interesse de pesquisadores para com o estudo das vivências e emoções, principalmente após o acesso, até então restrito, à denominada Quarta Aula, (VIGOTSKI, 2010).

Contextualizando os autores e suas abordagens
A psicologia Histórico-Cultural emergiu na efervescência da crise revolucionária russa e encontrou naquele contexto histórico-cultural, as condições para o surgimento de um novo paradigma psicológico, em oposição aos pensamentos científicos vigentes - deterministas, naturalizantes, idealistas e mecanicistas, sobre o conhecimento psicológico, apresentando uma nova concepção de sujeito.
Esta perspectiva teórica, representada, sobretudo, por Vigotski (1896-1934) - seu principal teórico -, Luria e Leontiev, se propôs, assim, conceber o ser humano, em sua “natureza”, como histórico, social e culturalmente inserido. Assim, a dimensão social, interpessoal e cultural ganha importância e fundamento na construção do sujeito psicológico; “Vigotski se opôs a qualquer reducionismo naturalista do ser humano” (Friedrich, 2012, p.62).
Para Teixeira (2005) “O que caracteriza a psicologia de Vigotski e seguidores, enfim, é o fato de estar fundamentada filosoficamente na concepção marxista de mundo e, por essa razão, abordar a gênese e o desenvolvimento do psiquismo desde um ponto de vista histórico e social” (p.24). Nessa perspectiva, citando Blonski, Vigotski afirma: “O comportamento só pode ser compreendido como a história do comportamento. Esta é a verdadeira concepção dialética em psicologia”. (Vigotski, 1931/ 2012a, p.68).
Henri Wallon (1879 – 1962) viveu em um contexto histórico de intensa instabilidade social e mudanças políticas, motivo pelo qual alguns autores brasileiros destacam que esse cenário de turbulência propiciou as condições fundamentais de influência sobre suas ideias acerca do lugar central que o meio ocupa em sua concepção teórica (Galvão, 2011).
Do mesmo modo que Vigotski, Wallon construiu seu sistema teórico no início do século XX, (muito embora, diferentemente de Vigotski, pôde desenvolve-lo até a década de 60), contexto em que as correntes psicológicas vigentes, como assinalado acima, apresentavam uma visão reducionista acerca do psiquismo humano, em que enfatizavam os processos lineares, biologizantes e mecanicista do desenvolvimento. Também Wallon opôs-se a essas correntes. A esse respeito, René Zazzo declara, em uma apresentação de Henri Wallon, num artigo incluído na primeira edição portuguesa (1978) da obra A Evolução Psicológica da Criança, (Wallon, 1941/2005): “Para apreciar a obra de Henri Wallon, o que ela tem de original, de inovador, seria necessário situá-la na história da Psicologia e compará-la com as obras dos seus contemporâneos, outros eminentes psicólogos da infância (p.9)”. O teórico francês, no prefácio do livro Para Conhecer Wallon - uma Psicologia Dialética, de Pedro da Silva Dantas, assim expressa: "Somos forçados a ultrapassar nossa razão clássica e a romper com nossa inteligência linear para compreender Wallon e, graças a ele, melhor compreender as crianças" (Dantas,1983, p.3).

Desenvolvimento: do pensamento, da linguagem, das emoções
            Pilares nas abordagens de Vigotski e Wallon, esses três domínios do desenvolvimento do sujeito – pensamento, linguagem e emoções – serão trazidos à reflexão, a seguir, ressaltando-se o específico de cada um desses domínios sem, contudo, negligenciar a inter-relação entre eles, bastante cara às duas abordagens aqui consideradas.  As relações com os contextos educacionais serão tecidas no percurso aqui proposto.
            Iniciamos com uma afirmação de Vigotski (1931/2012c), sobre o processo de desenvolvimento:
[...] a concepção tradicional sobre o desenvolvimento das funções mentais superiores é, sobre tudo, errônea e unilateral, porque é incapaz de considerar esses fatos como fatos do desenvolvimento histórico, porque os acusa unilateralmente como processos e formações naturais, confundindo o natural e o cultural , o natural e o histórico, o biológico e o social no desenvolvimento mental das crianças; brevemente mencionadas, tem uma compreensão radicalmente errônea da natureza dos fenômenos estudados. (p.12).

De acordo com Bozhovich (2009), o processo de desenvolvimento não é, de forma alguma, linear, segmentado, explicativo e causal, mas, sim, o resultado da internalização de fatores externos e sua transformação em aspectos internos, ou seja, implica em uma organização de processos de integralidade e singularidade do sujeito. Nessa direção, Campos e Francischini (2003) afirmam:
[...]o processo de desenvolvimento consiste na internalização de regras, valores, modos de pensar e de agir ocorrentes nas interações sociais do cotidiano dos sujeitos, nas práticas sociais e discursivas que permeiam as instituições sociais (família, escola, igreja, trabalho...) e os meios de comunicação. Nessas interações, recorre-se aos instrumentos de mediação semiótica disponíveis na sociedade, entre os quais a linguagem ocupa posição privilegiada (p.120).

Desse modo, considerando as inter-relações e interdependências entre os aspectos físicos, cognitivos, sociais e emocionais nele presentes, o desenvolvimento é a transformação integral que se produz no sujeito a partir de sua inserção no mundo da cultura e das relações sociais. Assim, o desenvolvimento, compreendido como a emergência e consolidação das possibilidades de autonomia do sujeito, é, por essência, cultural. A ênfase ou quase exclusividade no/do domínio cognitivo, tão presente nos contextos educacionais, de modo geral, necessita, portanto, de revisão.
Aqui, o conceito de intersubjetividade, que vem sendo adotado por estudiosos da psicologia Histórico-Cultural, auxilia-nos na compreensão desse processo dinâmico, de inter-relações, na constituição do sujeito. Molon (2011) afirma que “a constituição do sujeito acontece no campo da intersubjetividade, configurado como o lugar do encontro e do confronto e como o palco de negociações dos mundos de significação privado e público” (p.618). A intersubjetividade configura-se, assim, como o estado de encontro onde o sujeito é constituído a partir da relação que estabelece com o outro.
A esse respeito, podemos identificar uma convergência de pensamento, na abordagem de Wallon.
Iniciando por uma citação do próprio autor, Wallon, H. (1941/2005), sobre a unidade do ser, o autor nos afirma: “é contra a natureza tratar a criança fragmentariamente. Em cada idade, ela constitui um conjunto indissociável e original. Na sucessão das suas idades, ela é um único e mesmo ser em curso de metamorfoses. Feita de contrastes e de conflitos, a sua unidade será por isso ainda mais susceptível de desenvolvimentos e de novidade (p.215). Ainda, nesta mesma obra, Wallon, sobre as inter-relações entre os domínios biológico e social na constituição do sujeito, o autor afirma: “Na realidade, nunca pude dissociar o biológico do social, não porque os julgues redutíveis um ao outro, mas porque me parecem no homem tão estreitamente complementares desde o seu nascimento, que é impossível encarar a vida psíquica sem ser sob a forma das suas relações recíprocas” (p.14). São diversos os contextos em que, ao longo de sua obra, Wallon trata da não dissociabilidade entre o sujeito e o meio e entre os domínios do desenvolvimento humano. A citação abaixo é um exemplar desses contextos, com a particularidade de que o autor trata da questão da linguagem, do qual nos ocuparemos abaixo.
A atividade humana é inconcebível sem o meio social; mas as sociedades humanas não poderiam existir sem indivíduos que possuem aptidões como a da linguagem, que supõe uma determinada conformação do cérebro, já que certos danos à sua integridade privam o indivíduo da palavra, do mesmo modo que, por falta de um cérebro semelhante ao do homem, não existe nenhuma outra espécie conhecida que tenha um sistema de sinais adaptável indefinidamente a novos significados, como são as línguas humanas. É, por conseguinte, impossível dizer se foi o homem que fez a sociedade ou se foi a sociedade que fez o homem (WALLON, 1942/2008p.118).

Conforme pode ser observado, o autor refere-se às especificidades da linguagem humana, ressaltando as relações de reciprocidade da atividade dos sujeitos no meio social. Isto é, as inter-relações significam o meio social; outrossim, a sociedade organizada por um sistema de signos e de interações constitui os seres humanos.
Os espaços educacionais são, por excelência, campos de exercício da intersubjetividade; nele, educadores, alunos e demais atores sociais são desafiados a conviverem com o conhecimento produzido ao longo da história e com as novas possibilidades que vão emergindo, sobretudo, na contemporaneidade, com as novas tecnologias e as transformações delas decorrentes; a confrontarem-se com modos de vida e de existências singulares, decorrentes das condições de vida desses sujeitos; enfim, a exercitarem o diálogo e a tolerância, considerando a diversidade, característica da sociedade, de modo geral, e que se reflete nesses espaços.

           
A linguagem
Considerada “processo psicológico superior” por excelência (Vigotski) e “um sistema de sinais adaptável indefinidamente a novos significados” (Wallon) a linguagem destaca-se como temática central e essencial, na Psicologia histórico-cultural de Vigotski e na Psicogenética de Wallon.
Para Vigotski (1931/2012c), o desenvolvimento da linguagem é a prova contundente da fusão dos planos de desenvolvimento natural e cultural do ser humano. Nessa mesma direção, Pino (1993) afirma que o estudo ontogenético da aquisição da linguagem está amplamente vinculado à concepção de sujeito na psicologia Histórico-Cultural.
A linguagem é o principal sistema de representação simbólica de todos os grupos humanos, sendo responsável pelo compartilhamento social entre os sujeitos das produções culturais, resultantes da atividade humana. Para Faraco (2013) a linguagem é uma atividade discursiva, uma ação responsiva, que reflete e refrata a interpretação que os sujeitos têm das coisas. Portanto, os discursos compartilhados socialmente estão sempre relacionados ao outro; revelam-se, portanto, como interdiscursos.  O surgimento da linguagem na história da espécie humana aparece como fundamental desde o início e esta função apresenta duas funções básicas importantes: “Devemos mencionar, ainda, que a linguagem é a princípio um meio de comunicação com os outros, e somente mais tarde, se torna uma forma de linguagem interna, se convertendo em um meio do pensamento, sendo assim fica evidente a aplicabilidade desta lei na história do desenvolvimento cultural da criança”. (Vigotski, 1931/2012b, p.147).
Assim, podemos observar, nesta afirmação de Vigotski, que a linguagem cumpre um papel central nas relações sociais e apresenta duas funções básicas: a primeira, de intercâmbio social, com a finalidade de estabelecer a comunicação entre os sujeitos; a segunda, de pensamento generalizante, isto é, o compartilhamento e organização do mundo real e social, entre os sujeitos, por meio de conceitos, categorias linguísticas e significações dentro de um universo de diversificadas realidades socioculturais.
Assim como em Vigotski, em Wallon a linguagem apresenta uma dupla função: a primeira, de intercâmbio social e, a segunda, como organizadora do mundo social, significando e representando a realidade objetiva, isto é, como condição do pensamento. Entretanto, diferentemente de Vigotski, em Wallon a linguagem estabelece, principalmente no início da vida, uma relação íntima e interdependente com as emoções, domínio a ser abordado mais adiante, neste trabalho. Nesse sentido, Bastos (2003) argumenta: “Linguagem que, na psicogenética Walloniana, tem suas primeiras formas de expressão intimamente ligadas à emoção, que é considerada o ponto de partida do psiquismo e por meio da qual o bebê entra em contato com o mundo humano e se torna capaz de comunicar-se” (p.132).
Essas duas funções da linguagem, concebidas tanto por Vigotski quanto por Wallon, estão presentes nos contextos educacionais. Não nos é possível, aqui, trazer à discussão as múltiplas possibilidades de se pensar esse sistema simbólico e sua presença nas inter-relações que comparecem nesses contextos. São diversos os olhares possíveis, com destaque para as discussões relacionadas aos processos de aquisição da leitura e da escrita, para as quais o leitor encontra uma extensa e rica bibliografia em nosso país, e para as questões, mais no campo da Sociolinguística, relacionadas ao ‘confronto’ entre a linguagem do cotidiano e a ‘linguagem culta’, predominante na escolarização formal.

As emoções
Iniciamos as discussões sobre o estudo das emoções, em Wallon (1941/2005), considerando a importância que esse domínio assume em sua abordagem, com uma afirmação do próprio autor: “Os primeiros contactos entre o sujeito e o ambiente são de ordem afectiva:  são as emoções” (p.201). Portanto, segundo o teórico, desde o início da vida os sujeitos realizam-se e tornam-se seres relacionais por meio das emoções. No princípio de existência estão tão intimamente unidos a elas que confundem-se com as situações do seu contexto, isto é, (...) “com o ambiente humano de que provêm, na maior parte das vezes, as situações emocionais” (p.201).
Nesse contexto de discussão é importante refletirmos sobre o que postula a teoria walloniana acerca das funções emoções, sentimentos e paixões (domínio afetividade). Como explica Dér (2010): “a afetividade é um conceito amplo que, além de envolver um componente orgânico, corporal, motor e plástico, que é a emoção, apresenta também um componente cognitivo, representacional, que são os sentimentos e a paixão” (p.61).
A primeira função a diferenciar-se no conjunto afetividade são as emoções, principalmente pela sua natureza primitivamente orgânica no início da vida; subsequentemente, diferenciam-se os sentimentos e, em seguida, a paixão. Por essa razão, para Wallon (1941/2005), no domínio afetividade os componentes emoções, sentimentos e paixões estão na dependência da idade. Em decorrência, a afetividade é um conceito mais abrangente em que as emoções, os sentimentos e as paixões se inserem, configurando-se como manifestações da vida afetiva (Galvão, 2011).
Para Wallon (1941/2005), as emoções são a exteriorização da afetividade. “As relações que elas tornam possíveis afinam os seus meios de expressão, e fazem deles instrumentos da sociabilidade cada vez mais especializados” (p.143). Nesse sentido, são os sentimentos que irão corresponder ao componente representacional das emoções, podendo, dessa maneira, expressarem-se pelo gesto, pela mímica e pela linguagem.
Wallon (1934/1971) explicita que no início da vida as relações do ser humano com o meio ainda estão circunscritas às premissas psicofisiológicas da sua vida afetiva isto é, do seu comportamento emocional. Diante disso, o autor relaciona três características diferentes sobre a origem das reações emocionais: de sensibilidade interoceptiva, proprioceptiva e exteroceptiva.[1]
Wallon, (1934/1971), ao discutir a natureza das emoções, explicita que esta temática tem motivado o surgimento de teorias diversas e, muitas vezes, contraditórias. Todas derivando de um princípio comum, e ao mesmo tempo, causa dessas contradições, isto é, ligam a emoção à atividade de relação motora com o meio, ou aos centros nervosos correspondentes. O teórico reconhece nas emoções o caráter de reações organizadas e de possuírem, no sistema nervoso, centros reguladores que coordenam as suas manifestações. Porém, para o autor, o ponto de partida das reações ainda primitivas das emoções está no domínio postural, melhor dizendo, na atividade tônica do organismo, nas suas atitudes visíveis ou, na origem da base de suas funções viscerais. Em suas próprias palavras: “O grito é a primeira manifestação de vida do recém-nascido. Sinal de aflição, segundo Lucrécio, diante da miséria da existência humana” (p.34). Ou seja, a sua primeira forma de linguagem expressiva: “para ela, o grito constitui o prelúdio à palavra” (p.35). Desde o início da existência o poder contagiante e mobilizador das emoções se manifesta. Por isso, para o teórico “o contágio das emoções é um facto comprovado frequentemente” (Wallon,1941/2005, p.141).
Seguindo a mesma linha de discussão, a psicogenética Walloniana propõe explicar as emoções numa perspectiva integral. Ou seja, as expressões das emoções e os seus fins sociais, logo, o caráter contagioso e coletivo que as mesmas podem exercer sobre os outros, ou por meio deles. Dessa maneira, Wallon (1975) ao refletir sobre a relação da criança com o ambiente social nos primeiros meses de vida, enfatiza a importância comunicativa e contagiante das emoções: “Os seus gestos e gritos tenderão a exprimi-las e a criar as reacções correspondentes no seu meio. Deste modo dá-se uma fusão dela com os próximos por meio duma espécie de consonância afectiva, que faz lembrar o caráter comunicativo das emoções” (p.155).
O autor afirma que a riqueza das expressividades emocionais das crianças nos meses posteriores de vida dependerá das diversidades e oportunidades de relações proporcionadas pelo contexto e, nesse sentido, a pessoa responsável pelos cuidados da criança, em boa parte das vezes, a mãe, desempenha um papel preponderante como mediadora, dada as condições de necessidade, nas quais se encontra a criança ainda pequena. Logo, na teoria walloniana o poder de contágio das emoções materializa-se nas relações sociais.
A respeito disso Wallon (1934/1971) tece o seguinte comentário: “A emoção necessita suscitar reações similares ou recíprocas em outrem e, inversamente, possui sobre o outro um grande poder de contágio” (p.91). Nessa direção, Dantas (1983) esclarece que emoção estabelece uma comunhão imediata dos sujeitos entre si e das suas relações com o meio, constituindo-se como o fundamento da intersubjetividade.
Desse modo, gradativamente, a partir de sua condição emocional primitivamente orgânica, a criança percorre um processo de desenvolvimento, concebido, como afirmado em outro contexto deste trabalho, como dialético, na construção de si enquanto sujeito social, onde as emoções transformam-se, ganhando um caráter eminentemente social. Em outros termos, as emoções desempenham um papel fundamental na consciência de si a partir do outro. Com isso, a família, a comunidade escolar e o entorno comunitário, como principais contextos sociais de inserção da criança, contribuem significativamente na sua construção enquanto um ser culturalmente e historicamente constituído. Para Gulassa (2010), a criança “comunica-se com seu grupo familiar por meio de reações emocionais. Estabelece uma comunhão afetiva, o que precede as relações das ideias (p.105). Desse modo, as emoções cumprem o papel de mediadora nas interações sociais, e, dessa forma, a criança constitui-se como ser de relação com o seu meio e com os grupos aos quais pertença.
Sendo assim, o estudo das emoções na teoria Walloniana ganha uma originalidade ímpar, visto que elege o papel primordial da afetividade na constituição e na evolução do sujeito. Portanto, a psicogênese da pessoa completa evidencia o caráter primordial das emoções em seus pressupostos teóricos, epistemológicos e ontológicos. Para Wallon é por meio das emoções que a condição biológica do ser humano se converte em social. Isto posto, como afirmamos anteriormente, as emoções têm uma base orgânica, contudo, para o autor, apresenta um caráter social que permite a criança maximizar e especializar suas relações humanas e sociais. Desse modo, de acordo com Almeida (2012), a emoção constitui-se como um fenômeno dinâmico que ultrapassa sua condição primária de estado orgânico, cumprindo uma função mediadora na socialização dos sujeitos.     
            Em relação ao estudo das emoções, em Vigotski, duas observações introdutórias são necessárias: a primeira diz respeito ao fato de serem recentes, no Brasil, os estudos das emoções na perspectiva histórico-cultural; a segunda nos alerta para a necessidade de não dissociação entre o estudo das emoções e o conceito de vivência.
            Iniciando pelo conceito de vivência, para (Vigotski, 2010):
A vivência é uma unidade na qual, por um lado, de modo indivisível, o meio, aquilo que se vivencia está representado – a vivência sempre se liga àquilo que está localizado fora da pessoa – e, por outro lado, está representado como eu vivencio isso, ou seja, todas as particularidades da personalidade e todas as particularidades do meio são apresentadas na vivência, tanto aquilo que é retirado do meio, todos os elementos que possuem relação com dada personalidade, como aquilo que é retirado da personalidade, todos os traços de seu caráter, traços constitutivos que possuem relação com dado acontecimento. Dessa forma, na vivência, nós sempre lidamos com a união indivisível das particularidades da personalidade e das particularidades da situação representada na vivência. (p.687).

Vigotski (1933/2012d) explica que a vivência cumpre uma dinâmica biossocial, e, nesse sentido, é algo que se situa entre o sujeito e o contexto, estabelecendo, portanto, uma condição de intermédio entre ambos. Esta relação cumpre a função de revelar o significado, para o sujeito, do momento vivido e de que modo os aspectos do meio influenciam o seu desenvolvimento.  Dito de outro modo, para Vigotski, a vivência expressa, de maneira clara, duas dimensões: a dimensão da influência do meio no sujeito, por um lado, e, por outro, o modo como o sujeito vive essa dinâmica ao manifestar, naquele momento específico, a sua singularidade, construída ao longo do seu desenvolvimento histórico-social. Assim, durante o processo de seu desenvolvimento histórico, o sujeito realiza uma série de vivências, que são reguladas pelas diferentes relações intersubjetivas, que se sucedem nos diversos momentos e espaços dos contextos desse desenvolvimento. O esboço do conceito de vivência, acima, é condição necessária para entendermos o estudo das emoções em Vigotski, a seguir.
Como dizem os autores (Machado, Facci, & Barroco, 2011), mesmo existindo poucas evidências sobre o estudo das emoções em Vigotski, esta temática perpassa todos os trabalhos escritos pelo autor, inclusive aqueles que não são de cunho psicológico (no entendimento dos autores acima citados) como A tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca (1916) e Psicologia da Arte (1925), nos quais o autor analisa o fenômeno da reação estética, ou seja, o que acontece quando o ser humano se emociona diante de uma obra de arte. Nessa mesma direção, Toassa (2011) afirma que no livro Psicologia da Arte, Vigotski realiza um prenúncio de suas críticas realizadas na obra Teoria das Emoções, às correntes psicológicas que compreendiam as emoções como fenômenos perceptuais e fisiológicos originárias de mecanismos estímulo-resposta.
A principal publicação de Vigotski sobre esse trabalho foi sua obra Teoria das Emoções: estudo histórico-psicológico[2], escrita entre 1931 a 1933 e deixada inacabada pelo autor, possivelmente, devido a sua condição debilitada de saúde.
Para Vigotski, o ponto de vista das teorias psicológicas organicistas sobre as emoções e seu desenvolvimento no sujeito não era suficiente para a explicação dos complexos fatores nela implicados.
Segundo a perspectiva histórico cultural por ele delineada, o desenvolvimento histórico das emoções consiste fundamentalmente, na ação, em que se alteram as conexões inicias em que foram produzidas e, consequentemente, surge uma nova ordem e novas conexões. Complementando esta ideia, Vigotski concebe a importância das emoções, elevando-as para um plano superior da vida psicológica, tirando-as, portanto, de um lugar de processos fisiológicos da ordem das funções psicológicas inferiores, como são concebidas em uma concepção naturalista de seu desenvolvimento. Como explica, Machado et al. (2011): “Para Vigotski, as emoções são funções psicológicas superiores, portanto, culturalizadas e passíveis de desenvolvimento, transformação ou novas aparições. Além disso, a concepção vigotskiana de emoção coloca esse processo psicológico em estreita relação com outros do psiquismo humano” (p.651). Ainda em Machado et al., temos a afirmação de que o autor bielorrusso compreende “as emoções como formadas a partir de condições histórico-culturais, portanto, aprendidas em determinado contexto” (p.651), desempenhando uma atividade mediadora, ao cumprir uma função de intermédio entre o sujeito e o seu contexto histórico-social.
Para Vigotski (1930/2013), as emoções concebidas como processos psicológicos superiores surgem somente na condição histórica, sendo o resultado das relações intersubjetivas entre os sujeitos. Neste fato reside o processo de desenvolvimento das emoções.
Machado, et al. (2011) afirmam que em diversas culturas as emoções são expressas em signo (palavra, gesto) modificando-se e ganhando continuidade na intersubjetividade, tendo a linguagem um papel central como organizadora das mesmas.  Em vista disso, os sentimentos (dimensão psicológica das emoções) são emoções que ganham significado por meio da linguagem, e, em diferentes contextos participam do processo de desenvolvimento sociocultural dos sujeitos (Costa & Pascual, 2012).
Isto posto, para esses autores, no processo de desenvolvimento os sujeitos estabelecem intercâmbios sociais, portanto, comunicam-se e aprendem socialmente a significar suas emoções (sentimentos), constituindo sua condição, enquanto sujeitos, histórico-sócio-emocionais.  Sendo assim, as palavras organizam e materializam as emoções, desvencilhando-as do mundo interno dos sujeitos e expressando-as em sua realidade externa (conjunto de relações sociais). Nessa direção destacamos as palavras de Machado, et al. (2011): "as concepções de linguagem e emoção estão imbricadas pelo colorido emocional que acompanha cada palavra, situado no tempo e na história” (p.652).
Como mostra Brossard (2012), as emoções humanas têm um caráter eminentemente cultural e significante, ou seja, vão sendo organizadas dinamicamente de acordo com o meio social no qual o sujeito está inserido e são essências para o seu desenvolvimento. Nesse sentido, se constroem, se transformam, se significam, se ressignificam.
Cabe-nos destacar, desse modo, a necessidade de uma concepção de sujeito que leve em consideração o desenvolvimento social das emoções, e que a vida emocional ganhe um lugar central em seu processo de constituição. Para este mesmo autor, as expressões emocionais (risos, choros) são materializações da experiência emocional do sujeito, isto é, a dimensão afetiva de como ele viveu e experimentou dada situação ou evento. Desta maneira, o desenvolvimento é compreendido essencialmente como uma transformação de relações interfuncionais e de mudanças nessas relações e, portanto mudanças de posição do sujeito (relação dialética). Desse modo, as emoções diferenciam-se e transformam-se no decorrer do desenvolvimento em alterações ou mudanças de posição dos sujeitos no centro do sistema das funções vividas nos diferentes contextos.

Considerações Finais
            Do exercício aqui proposto, podemos observar que esses autores, ao investigarem os processos de constituição/desenvolvimento do sujeito, trouxeram reflexões ímpares e complementares que contribuem, sem sombra de dúvidas, para se pensar os contextos educacionais, suas especificidades, seu tempo e espaço de inserção na sociedade e, principalmente, as inter-relações presentes nesses contextos, com ênfase naquelas estabelecidas pelo sujeito aprendiz, objetivo último das aprendizagens.
Em relação à perspectiva epistemológica, as duas vertentes teóricas alicerçam-se no pensamento Marxista; o método dialético, guardadas as especificidades de cada um desses teóricos, desempenhou uma influência substancial no desenvolvimento e desdobramentos de suas teorias. Mesmo assim, as duas perspectivas convergem num ponto fundamental: a relevância do meio social no desenvolvimento, constituição e construção dos sujeitos.
Ainda sobre o ponto de vista epistemológico, os dois teóricos criaram, a partir de um inovador enfoque metodológico, uma nova psicologia geral. Desse modo, estes autores se opuseram aos paradigmas psicológicos naturalizantes e biologizantes acerca do fenômeno psicológico e, consequentemente, contrários à compreensão reducionista acerca da ontologia do sujeito. Assim, ambos concebem o processo de constituição do sujeito em sua relação intima com o outro, tornando sua constituição substancialmente social. Desse modo, ambos os autores convergem na compreensão de que a constituição e desenvolvimento histórico dos sujeitos acontece no campo da intersubjetividade.
Assim, Psicologia e Educação mostram-se como campos de observação, de questões para investigação, de construção de conhecimento e de instrumentos de aprimoramento de nossas práticas no cotidiano dos contextos educativos. Esta constatação oferece elementos para pesquisas interdisciplinares entre o conhecimento psicológico e educacional fundamentadas na perspectiva histórico-cultural de Vigotski e na psicologia psicogenética de Henri Wallon.
            Esperamos, com as reflexões aqui sugeridas, contribuir para a construção de conhecimento, reconhecendo que essa construção só ganha importância e valor quando pode ser socializada e fazer emergir inquietações suficientes para moverem possíveis estudos e teorizações sobre essas duas abordagens cujo legado, sem dúvidas, enriquece nosso pensamento a respeito dos processos educacionais.

Referências
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[1] Não será, aqui, detalhada cada uma dessas reações. Ao leitor interessado, remetemos à Wallon, 1934/1971)
[2] De acordo com Sawaia (2000), o título original da obra Teoria das Emoções (1931 – 1933) é: Espinosa e sua teoria dos afetos-prolegômenos à Psicologia do Homem. Todavia, mesmo com a referência à Espinosa no título original do livro esse autor não conseguiu realizar uma análise profunda da filosofia de Espinosa; na maior parte dos capítulos tece críticas às teorias psicológicas sustentadas pela filosofia de Descartes. Não obstante, o próprio Vigotski afirma, no prefácio de Psicologia da Arte (1925), que o seu pensamento constituiu-se sob o signo das palavras de Espinosa.

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